Um motorista de Uber do Rio de Janeiro, de 29 anos, criou um “manual de sobrevivência”, com dicas de trajetos seguros e condutas que devem ser adotadas nas comunidades e favelas da cidade. Mascarado, para não revelar a própria indentidade, ele atualiza o material com vídeos e orientações, conforme transita e trabalha nas regiões mais tensas da capital fluminense.
Nos últimos meses, o noticiário mostrou vários casos de turistas mortos e carros alvejados, após entrarem por engano em locais dominados por grupos criminosos no Rio de Janeiro. No dia 21 de fevereiro, um turista de São Paulo, de 80 anos, foi perseguido, agredido e teve o carro atingido por tiros de fuzil, após entrar no Complexo de Israel, conjunto de favelas dominado pela facção Terceiro Comando Puro (TCP).
Veja:
É nesse contexto que surgiu a ideia do “Raro”, codinome adotado pelo motorista que trabalha há três anos na Uber e passou a publicar as dicas na internet há cinco meses. Desde então, ele já acumula mais de 110 mil seguidores no Instagram e 93 mil no TikTok. Alguns dos vídeos viralizaram e atingiram milhões de visualizações.
“Quando você entra de carro numa comunidade [do Rio], você tem que jogar o jogo do local. Se está todo mundo com o alerta ligado, você liga o alerta também, sempre com vidro aberto, farol baixo… Você tem que imitar as pessoas dali, e na maior naturalidade do planeta. Não pode ficar nervoso. Quando você entra, geralmente, eles [os bandidos] vão te parar e perguntar de onde você é e o que está fazendo ali. E por mais que você seja uma pessoa de bem, se você ficar nervoso ou chorar, eles vão te matar. Você vai acabar indo de ‘arrasta para cima’”, explica o motorista ao Metrópoles.
Principais dicas de sobrevivência no Rio
Diante da repercussão dos vídeos, “Raro” decidiu disponibilizar e comercializar o conteúdo em forma de manual, o “Manual de Sobrevivência do Rio de Janeiro”, que é atualizado por ele semanalmente, com dicas e imagens sobre cada local. O material é direcionado não só para moradores, mas, principalmente, turistas desavisados que visitam a cidade ou estão de passagem para ir a algum evento de fim de semana.
A exemplo do que ocorreu na sexta com o turista de São Paulo, é comum que as pessoas sigam o caminho indicado por aplicativos de localização, como Waze e Google Maps, sem considerar os possíveis riscos existentes em determinados locais. As comunidades do Rio, hoje, são dominadas por diferentes facções (Comando Vermelho e TCP, por exemplo) e grupos milicianos.
A depender do local, uma rua errada pode ser o suficiente, como diz “Raro”, para que a pessoa “vire saudade”. Foi isso o que ocorreu com o turista argentino Gastón Burlón, baleado no dia 12 de dezembro, após entrar por engano na comunidade do Escondidinho, no Rio Comprido, área dominada pelo CV. Ele estava a caminho do Cristo Redentor e morreu no hospital, após um mês internado.
De modo geral, existem condutas básicas que valem para todas as comunidades e que podem gerar uma segurança maior, segundo “Raro”. São elas:
- Ao ver uma barricada [espécie de barreira na via], abaixe todos os vidros do carro e desligue o som. Isso facilita que você escute, caso seja orientado a parar ou questionado de alguma forma;
- Se for à noite, abaixe a luz do farol e ligue a luz interna;
- Em áreas do Comando Vermelho (CV), é orientado, ainda, que se ligue o pisca-alerta;
- Em locais dominados pelo TCP, ao contrário, geralmente não se liga o alerta. Nesse caso, basta ligar a luz interna, reduzir o farol e abaixar o vidro;
- Coloque uma mão para o lado de fora do carro, principalmente quando está entrando em local desconhecido. Isso oferece segurança, pois quem está de frente perceberá que, se uma mão está no volante e outra para fora, você não está armado;
- Se estiver numa zona de perigo e perceber que a situação está escalando, vá para dentro de um comércio local. Comerciantes são muito respeitados, o que reduz as chances de ação dos bandidos dentro dos estabelecimentos.
Veja vídeo de dicas do “Raro”:
Alerta semanas antes da morte de turista
No dia 3 de dezembro do ano passado, “Raro” publicou um vídeo com dicas sobre a comunidade do Fontela, na zona oeste do Rio, alertando sobre os acessos mais seguros e os cuidados necessários. De imediato, seguidores comentaram que ele estava exagerando e que o local era “tranquilo”. Semanas depois, no dia 28 de dezembro, uma turista levada por um carro de aplicativo foi baleada e morta na região.
Diely da Silva, de 34 anos, era baiana, mas morava em Jundiaí (SP). Ela havia viajado para o Rio de Janeiro para passar o réveillon. Na noite de 28 de dezembro, o motorista da Uber pegou ela e uma amiga no condomínio onde elas estavam hospedadas em Vargem Pequena e seguia em direção à Gávea, quando entrou, por engano, numa das áreas do Fontela e teve o carro alvejado.
A comunidade é dominada hoje pelo Comando Vermelho, mas já esteve sob domínio da milícia e vive intensa disputa entre os dois grupos. O motorista também foi atingido pelos disparos, mas sobreviveu. Segundo os socorristas que atuaram na ocorrência, ele teria recebido ordem de parada dada por traficantes do local, mas, como se tratava de área escura e sem visualização, ele não teria percebido o sinal.
“É uma vergonha ter que dar uma aula para uma pessoa ter segurança no Rio de Janeiro. É vergonhoso ter de falar sobre isso, mas no Rio de Janeiro, infelizmente, é assim”, diz “Raro”.
Veja o vídeo feito pelo motorista falando sobre o mesmo local semanas antes: