Pela primeira vez, em 69 anos de história, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) terá como presidente um representante do mercado e não das montadoras. Igor Calvet tomará posse e assumirá o cargo nesta terça-feira (15/4), em São Paulo.
Em entrevista ao Metrópoles, ele falou sobre o momento atual da indústria automobilística no Brasil, os maiores desafios enfrentados, as consequências do tarifaço norte-americano, transição energética e, claro, o avanço da presença de carros importados no país, o que preocupa as fábricas nacionais.
Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida por Igor Calvet ao Metrópoles:
Metrópoles: Vamos começar pelo fato inusitado. Pela primeira vez, a Anfavea está tendo um novo presidente representante do mercado e não das montadoras. O que significa isso para a Associação? É um novo momento?
Igor Calvet: Esse processo, ele vem sendo estudado e amadurecido ao longo dos últimos anos na Anfavea. É um processo de modernização da governança. Várias associações industriais, representativas dos setores industriais passaram por isso ao longo dos últimos anos, que é fazer com que a administração, a gestão da representação setorial seja feita por um profissional do mercado, um executivo independente. Na Anfavea, chega agora em 2025, mas na maioria das associações esse processo já aconteceu e ele vem como resultado de uma mudança também, imagino eu, do que acontece no mercado. O mercado mudou muito nos últimos anos e, portanto, também a representação setorial precisou mudar ao longo dos últimos anos.
Metrópoles: Você está assumindo em um momento em que o mundo tem discutido muito, talvez seja o assunto hoje mais comentado no mundo, que é a questão do tarifaço imposto pelo governo dos Estados Unidos. E todo mundo está se perguntando qual é o impacto disso para o Brasil, para a indústria nacional? Terá algum impacto para a indústria automotiva no Brasil?
Igor Calvet: Olha, eu assumo no momento em que acontece essa discussão inteira, mas é uma discussão muito mais turbulenta do que apenas Estados Unidos e tarifas do Trump. É um contexto em que você tem a presença de novos atores no mercado automotivo, sobretudo as empresas chinesas; você tem aqui as questões tarifárias globais que são impactadas pelas ações dos Estados Unidos; simultaneamente, um processo de transição energética que ocupa grande parte dos investimentos e desenvolvimento do setor automotivo, [que são os] veículos com novas formas de propulsão. Eu digo isso para reforçar que o momento é desafiador. O momento é super delicado, inclusive para esse setor. Em relação especificamente aos Estados Unidos, diretamente naquilo que diz respeito ao mercado de automóveis leves, aqueles que nós vemos nas ruas, não há um impacto imediato para o Brasil. A razão disso é porque nós não exportamos para os Estados Unidos. O estabelecimento da tarifa para o país de 10%, para automóveis, 35%, não nos afeta diretamente, mas pode nos afetar indiretamente, dado que um dos principais parceiros comerciais do Brasil, no que diz respeito ao setor automotivo, é o México. E o México, sim, sofrerá, pelo menos e momentaneamente, esses problemas com as tarifas. Então, o que a gente pode ver de imediato é um excesso de capacidade ociosa no México, que não poderá exportar para os Estados Unidos em virtude das tarifas ou, pelo menos, ficará mais difícil o consumidor comprar esses veículos vindos do México. Isso poderá fazer com que haja um desvio do comércio. O que quer dizer isso? Os veículos que eram produzidos no México, com destino aos Estados Unidos, podem começar a abastecer outros mercados, como os da América Latina. Então, nós podemos ter aqui uma concorrência maior, a presença de veículos mexicanos no Brasil. Então, nesse sentido, pode nos afetar. E, num segundo momento, nós vislumbramos também uma possibilidade de um desvio de investimentos, porque quando as questões se assentarem nos Estados Unidos, as empresas podem tomar decisões. Vale mais produzir no Brasil ou na região – Argentina, por exemplo – ou no México? E tomando essa decisão, para quais mercados a nossa exportação, a nossa produção vai? Então, isso é um efeito possível no médio prazo, mas, por enquanto, esse jogo ainda está sendo jogado. É um tabuleiro muito complexo, porque o que os Estados Unidos fazem tem repercussões na China, que é um importante ator para a gente, e também na Europa. Então, essa dinâmica ainda não se assentou e nós estamos olhando cuidadosamente.
Metrópoles: Você falou dessa possibilidade de ter uma maior concorrência na América Latina, em virtude do tarifaço, e a gente sabe que a Anfavea tem tido um posicionamento nos últimos anos para tentar ampliar as barreiras para essa chegada da concorrência internacional aqui no país. Como que está hoje o posicionamento da Anfavea em relação, até mesmo, à questão dos chineses e dos veículos chineses que têm entrado no país nos últimos anos? Qual é o posicionamento da associação hoje em relação a isso?
Igor Calvet: Se você me permitir apenas retificar, a gente não está querendo impor barreiras à entrada. A gente acredita que a concorrência do mercado é saudável, mas há um componente importante, que é o componente da produção local. Vender no país, produzir aqui em pé de igualdade com os demais é condição primária, “sine qua non” (indispensável) nesse processo. O nosso posicionamento, ele diz respeito às mesmas condições de venda e comercialização no mercado. Hoje, a presença de algumas marcas no Brasil, sem a contrapartida da produção, fazem com que o mercado brasileiro seja um mercado bastante olhado no mundo. Por quê? Porque nós não temos tarifas iguais aos outros mercados. A título de exemplo: grandes países, em termos de população e de economia, são produtores de veículos no mundo – Estados Unidos, China, Índia, a União Européia, com seus mais diversos países. Todos esses países, no que diz respeito à concorrência com esses novos entrantes chineses, elevaram as suas tarifas. Os Estados Unidos, por exemplo, agora, 104% – 140%, dependendo do cálculo que você fizer. O Canadá estava com 6%, por exemplo, de tarifa para os veículos elétricos; a Índia, 75%. A União Europeia, depois de uma avaliação dos subsídios à China, começou a taxar em até 48%. E o Brasil, hoje, 18%. O que quer dizer isso? É dizer que nós, dos mercados produtores, somos o mercado mais aberto. Esse é o primeiro ponto importante. E por ser mais aberto – do ponto de vista de mercado, é o sexto maior do mundo -, é claro que esse excesso de produção de algum lugar viria para o Brasil, porque nós estamos abertos. Então, veja: a igualdade de condições nessa concorrência, na entrada no mercado brasileiro, é fundamental por algumas razões. A primeira razão é de que o Estado brasileiro tem uma política de industrialização, que chama Nova Indústria Brasil e que quer sofisticar a produção no país. E esse tipo de ação, de liberar a entrada de importados indiscriminadamente, ela não ajuda na política industrial. A segunda razão que eu tenho colocado é que os trabalhadores brasileiros também são muito afetados. Hoje o setor automotivo emprega direta e indiretamente mais de 1,2 milhão de pessoas no Brasil, que é um número espetacular. Chegamos, eu acho, que até 1,3 milhão, que são os últimos dados que nós temos contabilizados na Anfavea. É uma espécie até de desrespeito com o trabalhador brasileiro esse tipo de ação. Não só ao Estado brasileiro, pela política industrial, mas também aos trabalhadores. E, por fim, acredito que é também um desrespeito àqueles que produzem no país. A Anfavea tem seus 69 anos como representante setorial, mas o setor está no Brasil há mais de 100 anos, produzindo, gerando emprego e renda aqui. Então, esse é um fator que a gente não pode negligenciar. E apenas para concluir, as importações são sempre muito bem-vindas. Elas nos ajudam inclusive, a complementar linhas. Elas nos ajudam a pressionar tecnologicamente para que a produção local seja igual no mundo inteiro. Nós temos uma indústria global. Agora, as importações desmesuradas, as importações sem freio, elas afetam a microeconomia do país, e as condições macroeconômicas também, porque a gente está falando de balanço de pagamentos. Então, tem que ser olhado com um olhar muito cuidadoso. Esse é um setor que hoje, a cada R$ 100 produzidos na indústria brasileira, R$ 20 vêm do setor automotivo. Por quê? Porque é uma cadeia extremamente longa e ao ser cadeia longa, a gente movimenta vários setores industriais também.
Metrópoles: Você falou da questão das importações. Os veículos importados têm ampliado a presença no mercado nacional? Vocês têm dados para mensurar isso hoje? O que representa hoje, por exemplo, o caso dos veículos chineses no Brasil?
Igor Calvet: Olha, essa é uma boa pergunta, porque traz, talvez, a evidência daquilo que nós temos comentado, e os dados últimos, desse trimestre deste ano de 2025, dão conta de que as importações foram, mais ou menos, nos últimos três meses, de 122 mil unidades de veículos que chegaram ao Brasil. Isso, o total de importados. Da China, em especial, foram, salvo melhor juízo, 33 mil unidades, o que performa algo em torno de 28%. Então, 28% das importações do total de veículos importados emplacados no Brasil vieram da China. “Ah, Igor, 28% é muito pouco.” Relativamente, não. A gente tem a maior parceira de importações do Brasil, que é a Argentina, com mais ou menos 40% e alguma coisa. Mas nós não podemos esquecer que nós temos com a Argentina um acordo de décadas e que nós fazemos investimentos conjuntos, e temos uma complementaridade econômica. Nós vendemos carros para os argentinos, nós compramos carros argentinos, vendemos autopeças para os argentinos, também. E as nossas fábricas, em geral, complementam linhas em um e outro lugar. Então, com a Argentina é um caso à parte, e o da China é o que vem mais crescendo, nos últimos anos. Então, o que já foi 12%, 13% do total de emplacamentos, que é o normal das importações de um país produtor, hoje o Brasil já, do total anual, já chega a mais de 20% de emplacamentos de veículos importados, o que é uma subida bastante grande, talvez nunca vista desde 2012 no Brasil.
Metrópoles: O mercado de veículos no Brasil passou por um momento delicado, na pandemia. Já deu para se recuperar? Como é que está hoje o contexto do mercado de veículos no país?
Igor Calvet: A pandemia foi, em muitos aspectos, um momento desafiador e um desastre em vários outros [setores]. No setor automotivo, significou a redução do mercado e a redução da produção. Nós, em 2024, atingimos um número de emplacamentos de, aproximadamente, 2,6 milhões de unidades de autoveículos, o que inclui veículos leves, os caminhões também, os ônibus e comerciais leves. Esse número é, mais ou menos, o mesmo número de 2019. Ou seja, a pandemia começou ao final de 19, início de 20. Em 19, nós tínhamos, mais ou menos, 2,6 milhões de unidades. Esse número de emplacamentos do mercado só atingimos agora em 24. Portanto, nós gastamos esse tempo inteiro, né, de pandemia e pós-pandemia para nos recuperarmos, apenas, no ano passado. A nossa expectativa esse ano é que a gente supere essas 2,6 milhões de unidades e chegue a 2,8 milhões, que vai dar um crescimento de 6% desse mercado. Então, a pandemia afetou drasticamente os nossos volumes e a gente só está recuperando agora, seis anos depois.
Metrópoles: Como é que você vê o futuro do mercado [automobilístico] no país? Tem indicadores que apontam essa tendência de crescimento? Como vocês tem avaliado isso?
Igor Calvet: O mercado brasileiro cresceu, em 2024, 14%. Nesse ano, estamos prevendo um crescimento menor, mas ainda assim robusto, de aproximadamente 7% do mercado, que é maior do que a maioria dos setores industriais. E a razão disso é que nós vínhamos de uma base, durante a pandemia, baixa. Então, a gente tinha uma demanda reprimida também nesse mercado. Agora, o que mais me preocupa nesse futuro, e em futuro próximo, primeiro, é que a gente já diminuiu mais ou menos a metade do crescimento do ano passado na projeção deste ano. Nós temos questões que a gente precisa dar conta no Brasil, [como a] taxa de juros, por exemplo, e a agenda fiscal, que impactam bastante o nosso mercado. A gente precisa de um período de estabilidade, e o mundo também está muito instável. Por incrível que pareça, o Brasil parece-me um dos países mais estáveis hoje do mundo. [Brasil] que nunca foi o maior exemplo de estabilidade, mas hoje nos parece. A maior preocupação que nós temos, e essa eu faço questão de registrar, é a preocupação com a produção, porque uma coisa é o tamanho do mercado, e outra coisa, que é muito importante para nós, é o quanto desse mercado nós conseguimos suprir com a produção local. E esse fator da produção é que nos assusta. A gente cresceu, no último trimestre, a produção em algo em torno de 5%, em relação ao mesmo período de 2024, mas as importações cresceram 25%. Então, a gente está importando muito mais para dar conta do crescimento do mercado. Isso não tem sido acompanhado “pari passu”, no mesmo montante ou, proporcionalmente, ao crescimento da produção local. Isso, sim, nos preocupa ao longo do tempo, porque, mais do que vender carros, caminhões, ônibus, máquinas agrícolas e rodoviárias, a importância é que essas máquinas sejam produzidas e esse conhecimento, essa tecnologia fique no Brasil. Poucos conseguem ver ou entender a complexidade produtiva e de fabricação de um veículo, qualquer que seja, grande ou pequeno. Mas o tanto de tecnologia embarcada que tem, de eletroeletrônico que tem, esse processo de transformação industrial do couro, da areia é gigantesco A quantidade de têxteis que tem num veículo também. Então, isso tudo nos importa como cadeia, acho que como visão mesmo estratégica de país ao longo do tempo.
Metrópoles: E ao que você atribui essa questão estrutural mesmo da não correspondência da produção local à demanda do país hoje. O que explica isso?
Igor Calvet: Isso é muito explicado em função do cenário atual, que eu entendo ser conjuntural, de facilidade das importações, num contexto em que o mundo inteiro erigiu barreiras para equalizar a competição. O Brasil não erigiu essas barreiras para equalizar. Não é pra impedir, é para equalizar a competição. Então, grande parte dessa queda, desse ímpeto industrial pode vir daí. Mas a gente tem alguns outros fatores. Há muitos deles intangíveis que dão conta do nosso custo de produção, no Brasil. O custo de produção no Brasil, por exemplo, é muito menor do que o custo de produção no México. Quando a gente fala de custo, são vários os custos possíveis: o custo logístico, o custo capital, o custo de infra, o custo de energia. Então, a gente tem uma série de variáveis no Brasil que fazem com que esse custo seja mais alto. Então a gente tem que trabalhar nessas causas do custo para nos ajudar, inclusive, a ser mais competitivos.
Metrópoles: Esse custo [de produção] mais alto, no fim das contas, influencia no valor do veículo hoje? Uma das grandes perguntas que a população faz hoje é sobre por que os carros estão tão caros no país? Qual é a explicação para isso?
Igor Calvet: Olha, primeiro que eu não tenho um mandato como representante setorial para falar do preço de ninguém. Isso é uma questão comercial de cada uma das empresas. Isso é muito tranquilo para mim, mas eu posso mencionar a você assim dois componentes essenciais de custo e que influenciam no preço. Primeiro, o tributário. Nós ainda estamos em processo de reforma tributária e de especificação, além dos limites da reforma e da carga tributária. Mas hoje a carga tributária para o automóvel no Brasil é entre 40% e 45% de custo. Com o tanto de impostos que nós temos, não preciso dizer que é um componente fundamental. O outro componente fundamental é o câmbio. Nós temos também muitas partes e peças ainda que são importadas para se fazer um veículo e o câmbio batendo R$ 5, R$ 6 também encarece esse custo de produção. Então, eu dei dois fatores que ajudam a explicar o preço, mas é óbvio que o preço, também, é uma estratégia individual de cada empresa e por nichos de mercado que variam com a renda do próprio consumidor e outras coisas mais. Mas essas duas eu consigo te dar clareza de que impactam profundamente.
Metrópoles: Uma possível redução futura do preço do veículo no Brasil depende, portanto, desses dois fatores.
Igor Calvet: Depende também, não só, porque tem questões de mercado normais. Eu adicionaria até – eu falei do Tributário, mas acabei não especificando, e que causa uma insegurança muito grande no Brasil. Os automóveis foram colocados no rol daqueles produtos, sobre os quais incidirá um imposto seletivo, que é o dito – eu não gosto dessa expressão – “imposto do pecado”. Então colocaram o automóvel ali, como se fosse um produto que causasse dano ao meio ambiente ou à saúde, visão da qual eu discordo veementemente, mas o meu ponto nem é esse. Meu ponto é que essa definição das alíquotas do imposto seletivo virá por lei ordinária e isso não será definido agora, inclusive no próximo ano, o que nos causa mais apreensão ainda, porque se hoje a alíquota é de 40% a 47%, juntando todos os impostos estaduais e federais, a gente sabe que vai ter uma alíquota base que nós torcemos para ser 26,5%, a mais baixa possível, mas nós teremos um pênalti, uma penalidade adicional, que é o imposto seletivo, que a gente não sabe o quanto vai variar. Então, a gente não sabe se nós vamos ter aumento de carga tributária ou redução da carga tributária. Todo mundo trabalha [hoje] na incerteza, o que para esse setor é muito ruim. A incerteza para o setor automotivo, ela é péssima, porque nós trabalhamos com ciclos de investimentos. O que está sendo desenvolvido hoje na indústria é o que vai estar no mercado daqui a cinco anos. Mas para estar no mercado daqui a cinco anos, eu preciso fazer os meus estudos de mercado. Eu preciso falar de tributação, eu preciso falar de rede de distribuição, eu preciso falar de peças que vão compor aquele veículo em desenvolvimento. Com o dólar flutuando ou oscilando muito para cima, como está agora – eu acho ótimo flutuar o dólar -, com o custo tributário altíssimo e com a ausência de algumas regulamentações que impedem essa questão equânime na competição com os importados, fica cada vez mais difícil.
Metrópoles: Essa concorrência interna, com a chegada dos importados, não favorece essa questão do preço do veículo lá no final, para o consumidor? Não é uma livre concorrência que favorece o consumidor, no final das contas?
Igor Calvet: Essa é uma boa pergunta, porque aí você define a livre concorrência como? Apenas como a entrada indiscriminada dos veículos importados no Brasil? Enquanto você libera essa entrada, você aprisiona o produtor local numa rede de custos infinitas. Então, me parece que não é um livre mercado competitivo, porque você impõe custo livre. Mercado competitivo seria se você tivesse os mesmos padrões competitivos para todo mundo, o que não acontece hoje. Então, de uma forma ou de outra, você tem, na verdade, um desnível competitivo e que não é um livre mercado. Ponto. O consumidor quer, óbvio, preços mais baixos, mas preços mais baixos às expensas de quê e de quem? Porque, muitas vezes, o preço mais baixo vem como subsídios; ele vem, na verdade, camuflado de dumping. Então, o consumidor pode até imaginar que num primeiro momento está comprando por um preço mais baixo, mas depois, quando o mercado for pilhado, quando tomarem de assalto o mercado, esses preços podem voltar a subir e você começa a fazer margens muito maiores. Todo mercado competitivo ele é bom, porque ele traz a concorrência, vai trazer mais tecnologia, vai trazer mais bem-estar para o consumidor. Agora, a gente não pode perder de vista que o que se imagina que seja um livre mercado, na verdade, não é livre mercado, pois libera parte do mercado e aprisiona a outra parte do mercado. Aí, isso não é o livre mercado de competição igual.
Metrópoles: Você usou o termo “tomarem de assalto” o mercado. É assim que você classificaria o que está acontecendo hoje no Brasil?
Igor Calvet: Eu tenho dito duas expressões. Eu tenho dito pilhagem, que eu sou contra a pilhagem no mercado, e tomar de assalto. Por quê? Porque praticar, entrar no mercado brasileiro de maneira desigual, competitivamente desigual, estabelecendo preços que nós não temos certeza – nós estamos iniciando uma investigação se há dumping ou não, e mergulhando nesses preços -, tornando a competição cada vez mais difícil, é tomar de assalto o mercado brasileiro, é não ter rentabilidade, é querer conquistar o mercado às custas de quem está aqui produzindo, com custos diferentes. E ao fazer isso, você desestrutura o mercado. E ao desestruturar o mercado, você, primeiro, fecha a torneira do investimento das empresas que já estão aqui. Eu vou investir para quê? Eu vou investir meu dinheiro, meu capital, em algo que lá na frente vai me trazer um problema e não tenho retorno desse capital? Então, essa torneira começa a fechar. E no segundo momento, o que acontece? Você acaba com a concorrência. Por quê? Porque você pratica preços que são irreais e ao acabar com a concorrência, você depois vira ou um oligopólio ou um monopólio, o que é muito ruim também.
Metrópoles: Vamos falar um pouco sobre transição energética. Você mencionou no início da nossa conversa aqui que esse é um dos aspectos que caracteriza o momento atual da indústria automotiva no Brasil. Como que a indústria automobilística hoje pode ajudar a promover essa transição energética?
Igor Calvet: Nós estamos num ano de COP, de COP no Brasil, em Belém, a COP 30, e é muito interessante nós analisarmos aqui o setor de transportes. Ele representa hoje algo em torno de 13% das emissões de CO2 no Brasil. Por que eu friso esse número? Porque, em geral, quando se fala de CO2, poluição, duas imagens vêm à nossa cabeça, ou pelo menos passam nos jornais, televisões, etc, que é um cano de descarga, um carburador de um carro e uma chaminé de uma fábrica. Mas a verdade é que a nossa indústria é 13%. “Ah, Igor, isso você está querendo dizer que vocês não têm compromisso?” Em hipótese nenhuma. Nós temos um compromisso muito grande com isso e eu te dou alguns números: hoje, certamente, mais de 85% da frota circulante no país roda com motores flex que usam gasolina e etanol. A quantidade de etanol na nossa gasolina ela já é responsável por uma descarbonização de milhões de veículos. É como se houvesse milhões de veículos elétricos no país rodando. Nós temos uma vantagem competitiva no Brasil. Nós costumamos dizer que a Anfavea ela não é elétrica, ela é eclética. Por quê? Porque o que importa, na nossa visão, é ter múltiplos canais de descarbonização. Se eu vou descarbonizar com o etanol, ótimo. Se eu vou descarbonizar com bateria elétrica, com um veículo elétrico, ótimo. Se eu vou utilizar HVO, gás ou mesmo célula de hidrogênio, ótimo, porque a finalidade não é uma rota tecnológica específica. A finalidade é descarbonizar. E aí é um ponto bastante importante. Nós fizemos, recentemente, um estudo na Anfavea que dá conta da descarbonização do setor automotivo no Brasil. A gente sabe que em 15 anos, em 2040, mais de 80% das vendas de veículos no país serão de veículos com algum nível de eletrificação. Eu não estou dizendo que será um veículo puramente elétrico. Para aqueles que não acompanham o setor, podem ser níveis diferentes. Pode ser totalmente elétrico, pode ser um híbrido plug-in de ligar na tomada… Algum nível de eletrificação nas vendas, em 80% das vendas, vai ter em 2040. Mas por incrível que pareça, a gente aponta que se nós avançarmos somente na eletrificação, não será suficiente para a gente reduzir os níveis de emissões de CO2 no Brasil – dados de 2022. A gente vai ter que combinar com uma estratégia robusta de uso de biocombustíveis também. Então, tudo aquilo que eu te falei que a gente vai ter, que a gente é eclético, que a gente não acredita numa rota tecnológica apenas, no caso do Brasil, com o estudo recente que nós fizemos, a gente notou que a gente vai ter que seguir pelos dois caminhos para descarbonizar. O interesse é descarbonizar. A rota dos biocombustíveis e a rota da eletrificação somadas, se a gente colocar esforço nisso, nós vamos ter mais de 400 mil toneladas de CO2 evitadas na atmosfera, nos próximos 15 anos. A gente vai ter uma redução de aproximadamente 7% nas emissões de CO2, com base nas emissões de 2022. Serão 7% de redução, se a gente fizer tudo certo, porque se a gente escolher só uma rota, muito provavelmente ou a gente vai aumentar as emissões ou a gente não vai conseguir reduzir absolutamente nada. Vai ficar de igual para igual. “Ah, Igor, mas por que isso aconteceria?” Porque a gente tem que lembrar que a nossa frota vai aumentar. Hoje, circulando nas ruas do Brasil, só de veículos leves, nós temos 45 milhões. Se em 2040, daqui a 15 anos, a previsão é ter 70 milhões. Então, a gente tem rota tecnológica, tem tecnologia para descarbonizar, mas a frota vai crescer. Então, tem que ter medidas que compensem esse aumento de frota. E a única maneira de ter medidas de carbonização para compensar esse aumento de frota, hoje, é combinando as melhores tecnologias de descarbonização.
Metrópoles: Você falou dessa questão da previsão para 2040 de 80% dos veículos com algum grau de eletrificação. O que precisa de infraestrutura no Brasil hoje na indústria para termos mais carros elétricos, até autônomos, que a gente sabe que é uma tendência, como você mesmo disse nessa estimativa. O que falta, estruturalmente?
Igor Calvet: Nós mensuramos, aproximadamente, 700 mil pontos de recarga no Brasil para que a gente atinja isso. E eu não vou ter de cabeça aqui a quantidade de investimentos públicos e privados, mas é na casa de bilhão de reais para que isso aconteça também, da eletrificação. Um dos grandes gargalos para eletrificar em [veículos] leves é a infraestrutura. Por quê? Em um país como o nosso, que é de renda média para baixo, você bate num teto de capacidade do consumidor. Então, se for muito caro, você não consegue. E a gente tem uma outra dimensão importante, não só da infraestrutura de recarga, como também da infraestrutura de geração, porque a gente tem que pensar que se, “ah, a gente quer eletrificar toda a frota brasileira”, o consumo de energia aumenta. E o consumo de energia vai ser concorrente, porque a energia é uma só, com os outros usos de energia. Então, você imagina o consumo de energia nos veículos crescendo. A gente tem que torcer para a economia seguir bem. Aí o consumo da indústria aumenta também, o consumo das residências aumenta. Será que o investimento em geração, em transmissão de energia e distribuição está sendo feito na mesma proporção?
Metrópoles: Existe essa conversa sobre esse assunto?
Igor Calvet: A gente começou a mensurar isso, mas isso não é muito bem delineado, até porque o impacto dos elétricos, dos elétricos em todos os seus níveis, e como ainda é muito pequena a quantidade no montante geral de emplacados ou na mesma frota, a gente ainda não consegue mensurar isso. Mas nós temos casos, e casos recentes inclusive, de vários ônibus elétricos em algumas cidades do Brasil parados. Por quê? Por uma questão de infraestrutura e de não ter como recarregar esses veículos. Então, não é uma questão só do produto. É uma questão, de fato e de verdade, de uma coordenação pública e privada para esses investimentos na infraestrutura. Regulação nós temos hoje, que dá conta da redução do nível de emissões, tem um mercado no mundo crescendo, mas eu, pessoalmente, acredito que, no Brasil, o ritmo de eletrificação é naturalmente menor do que em outros lugares. Então, a gente não vai ver, e essa é, talvez, a minha previsão, e eu quero estar correto, porque a gente defende as nossas previsões, mas a gente não vai ter essa curva indicando para cima rapidamente, porque a gente é um país de renda média para baixo. Os países de renda alta conseguem fazer essa transição mais rapidamente, porque tem mais condições de investimento, infraestrutura, um Estado, às vezes, menor. Países como o nosso têm mais dificuldade.
Metrópoles: Mas numa análise do comportamento do consumidor hoje, você já não percebe uma certa tendência, uma mudança de visão em relação a essa receptividade dos veículos elétricos no Brasil?
Igor Calvet: Existe um movimento em qualquer mercado que é um movimento também da curiosidade. Eu costumo dizer que o mercado de elétricos, puramente elétricos no Brasil, ele ainda é um nicho. E o que reforça esse meu argumento é o fato de que no ano passado, 2024, nós tivemos uma média de emplacamentos mensais de veículos elétricos de, aproximadamente, 5 mil veículos por mês. [Um mês] Foi 4 mil; outro mês, 5 mil; até teve mês que foi 6 mil e alguma coisa, mas, na média, 5 mil veículos elétricos emplacados. Só que a gente tem umas deturpações. Nos mercados do Brasil que têm maior poder aquisitivo, você costuma ver esses veículos mais, que é aquilo que eu falei, porque tem um fator de interesse do consumidor de mais alta renda por esse tipo de veículo. Mas para alguns usos, o transporte, por exemplo, o coletivo pequeno, e nas cidades – esses novos aplicativos que, também, usam os veículos elétricos… Então, você tem os novos entrantes entrando, o consumidor interessado, que aí são aqueles consumidores que são os curiosos, mas que já viriam e já compram de fato aquele veículo que tem um maior poder de renda, mas há uma estabilidade no Brasil, como um todo, do número de emplacamento desses veículos. Então, assim, há uma curiosidade, há um aumento, sem dúvida nenhuma, mas eu acredito ainda que ainda é um nicho não acessível para todos.
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