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Saúde incha Justiça com um processo a cada 47 segundos

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No Brasil, a cada 47 segundos em média, a Justiça recebe um novo processo referente a queixa no atendimento em saúde, seja pública ou privada. O número de litígios aumentou 93,4% entre 2020 e 2024, encerrando o último ano com 673.689 processos, conforme o painel Estatísticas Processuais de Direito à Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

De 2020 a 2024, foram 2,47 milhões de novos processos ao todo. No período, a saúde pública respondeu por 59,6% (1,47 milhão) deles, enquanto a saúde suplementar alcançou 0,99 milhão, 40,4% do total.

Mesmo a saúde suplementar não representando a maior parte dos processos, ela registrou o maior crescimento no intervalo analisado: 112%. A rede convencional teve incremento de 80% nas ações.

Imagem colorida gráfico sobre processos de saúde

Embora o número de processos cresça ano a ano, o tempo médio para o primeiro julgamento tem caído. Passou de 323 dias em 2020 para 280 dias em 2024. A espera do ano passado correspondeu a 9,3 meses, um tempo que, em muitos casos, pode ser determinante para definição da sobrevivência.

A estudante Tainá Bianchi Lisboa, de 26 anos, é uma das pessoas que precisaram recorrer à Justiça como forma de lutar pela própria vida. Ela foi diagnosticada com erro inato da imunidade e síndrome autoinflamatória em 2016. A doença provoca, entre outros fatores, uma redução na capacidade de defesa do organismo, o que a deixa suscetível a processos inflamatórios e a bactérias.

Dois anos depois de descobrir o problema de saúde, Tainá ingressou com uma ação na Justiça. O motivo é que o Sistema Único de Saúde (SUS) fornece o medicamento que ela precisa, mas somente na apresentação intravenosa. “Quando eu tomo a (medicação) venosa, eu tenho meningite asséptica, cefaleia intensa, encefalite, febre, náusea, fatigardia, hipertensão”, detalha Tainá ao acrescentar que a médica lhe alertou que as circunstâncias podem culminar em morte.

A solução para o caso da jovem é o mesmo medicamento, mas administrado de maneira subcutânea. O custo das duas aplicações a cada 14 dias equivale a aproximadamente R$ 32 mil por mês, valor que ela e a família não têm condição de assumir. A apresentação intravenosa se chama “imunoglobulina g (0,1G/ml) fraso 300 ml + hialuronidase solução injetável frasco 15 ml”, que, conforme uma declaração de nada consta em estoque, enviada por Tainá à reportagem, também não estava disponível na Farmácia Central da Secretaria de Saúde do Distrito Federal no último dia 19.

“Ontem (quarta-feira, 27/3) mesmo, eu estive aqui no hospital, aí a médica, a gente conseguiu uma doação de imunoglobulina, só que da venosa. Aí eu fiz. A princípio, eu tenho que fazer no total do mês 12 frascos. Aí eu faria metade da dose agora, e daqui a 14 dias a outra metade. Mas eu fui para o hospital, e aí como eu comecei a ter reação adversa durante a infusão, a minha médica não deixou eu tomar os seis frascos”, afirmou ao Metrópoles.

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Tainá Bianchi Lisboa com frascos de medicamentos

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Tainá Bianchi Lisboa precisa de medicamentos que custam, em média, R$ 32 mil por mês

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Falta de medicamento adequado pode levar Tainá Bianchi Lisboa à morte

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Tainá Bianchi Lisboa

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Tainá Bianchi Lisboa recebeu, em 2016, o diagnóstico de erro inato da imunidade e síndrome autoinflamatória

Hugo Barreto/Metrópoles

Sobre o caso de Tainá, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) afirmou que foi determinado o arquivamento do processo por causa do cumprimento da sentença. A jovem explica que é justamente o fato de as decisões judiciais não determinarem o fornecimento ininterrupto que a levam a ter de recorrer várias vezes ao Poder Judiciário. “Sempre no relatório a médica coloca , que (o medicamento) é por tempo indeterminado, que é um tratamento pro resto da vida , pois não tem cura. E que se não tomar o remédio tem risco iminente de morte.”

A Secretaria de Sáude do Distrito Federal e a Procuradoria Geral do Distrito Federal sobre o caso de Tainá, mas não responderam.

Qual o motivo do aumento

O especialista em Direito Empresarial, Direito Tributário e Processo Administrativo e Judicial Tributário Pedro Scudellari atua com casos de litígios na Justiça relativos a questões de saúde. No entendimento dele, casos como o de Tainá integram a maioria das demandas ao Judiciário e isto está associado a um desalinhamento entre a velocidade da inovação farmacêutica e a capacidade de o Estado avaliar e incorporar novas soluções em saúde.

“Olha a pressão para o juiz, de definir entre a vida e a morte. Quando a pessoa pede um tratamento? Quando ela não tem condição de pagar e precisa dele. Imagina a responsabilidade de um juiz? Por isso que o Supremo instituiu um julgamento que orienta todos os juízes sobre alguns critérios para definir o que pode ser decisório e o que não pode”, afirma.

A pontuação do Supremo Tribunal Federal (STF) a que Scudellari se refere é de setembro de 2024. Foram estabelecidos critérios para o fornecimento de medicamentos de alto custo. Com isto, o juiz só poderá determinar o fornecimento, desde que de maneira excepcional. Isto está condicionado à comprovação, pelo autor da ação, de que não tem como comprar o medicamento, que ele não pode ser substituído por outro previsto na lista do SUS, e que a eficácia está baseada em evidências, além de ser imprescindível para o tratamento.

Diante da escalada no número de ações relativas a medicamentos, o advogado considera que o Estado deve trabalhar na estruturação de uma política pública para lidar com estes casos. “Essa decisão do STF, na verdade, coloca umas regras, limites mínimos para que a gente possa alinhar. Para garantir uma gestão destes casos, é necessária uma política pública de saúde”, defende.

A supervisora do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) do CNJ, Daiane Nogueira de Lira, considera que o aumento no ingresso de ações relativas à saúde na Justiça se deve a uma série de fatores.

“Temos a questão de envelhecimento da população brasileira, uma complexidade nas relações contratuais na área dos planos de saúde, a evolução tecnológica da Medicina, da indústria farmacêutica, tudo isso resulta em uma oferta de novos produtos e serviços que cada vez mais são sofisticados tecnologicamente, mas também acabam sendo também de altos custos e para o cidadão conseguir”, considera Lira.

Lira pontua que, no caso dos serviços particulares de saúde, há uma nas “relações contratuais” que impacta na judicialização. “Evidentemente, que esse aumento também revela falhas e omissões, tanto por parte do Estado, em relação ao SUS e também de operadoras de planos de saúde”, acrescenta a supervisora do Fonajus.

O CNJ está interessado em entender melhor as causas do aumento desta judicialização e realiza neste ano uma pesquisa relativa aos casos que se referem à saúde suplementar. A intenção é que os resultados orientem a formulação de políticas públicas judiciárias que busquem a redução no ingresso de novas ações.

Respostas

Questionado sobre como tem se preparado para tratar do aumento consistente de demandas refrentes a atendimentos na saúde, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ-SP) afirmou que, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), “tem atuado em questões relacionadas diretamente a reclamações de consumidores”.

“Em maio de 2024, a Senacon notificou 20 operadoras de planos de saúde devido a cancelamentos unilaterais de contratos, em resposta ao aumento significativo de reclamações e Notificações de Investigação Preliminar no sistema da Agência Nacional de Sáude Suplementar (ANS)”, diz trecho da resposta enviada ao Metrópoles.

Por meio de nota, o Ministério da Saúde que realiza várias ações para reduzir a judicialização da saúde e que apoia um julgamento do tema no STF com o fim de deixar mais claras as responsabilidades dos governos quanto à saúde.

“Com a distribuição de competências, há uma melhora na gestão dos recursos públicos em saúde, garantindo que as demandas sejam tratadas de forma mais eficiente, ao estabelecer um sistema que permita melhor acompanhamento e definição de responsabilidades entre os diferentes níveis de governo”, diz trecho da resposta.

A pasta também disse trabalhar em uma plataforma integrada sobre medicamentos para melhorar a gestão do tema.

Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) foi procurada pela reportagem para se posicionar sobre o crescente número de processos referentes à saúde complementar, mas não apresentou resposta até esta sexta.

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