*O artigo foi escrito pelo microbiologista Ignacio López-Goñi, membro da Sociedad Española de Microbiología (SEM) e professor da Universidad de Navarra, na Espanha, e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
Você já pode ter tido uma infecção por herpes em algum momento: pequenas bolhas que aparecem na área dos lábios, secam e desaparecem depois de alguns dias, e misteriosamente reaparecem mais ou menos na mesma área algum tempo depois. Embora pareça algo corriqueiro, este tipo de vírus já foi associado até a um risco maior de ter Alzheimer.
O vírus que causa o herpes pode infectar vários tipos diferentes de células, como as células epiteliais, os neurônios e linfócitos. Nas células epiteliais, ele multiplica-se e forma vesículas cheias de um fluido que contém milhões de partículas virais. Essas bolhas acabam secando e formando crostas.
Mas o patógeno também é capaz de infectar os neurônios que inervam a mesma área da pele. Ele percorre o axônio da célula nervosa até seu núcleo. Lá, ele permanece dormente ou oculto por meses ou até anos. Em um determinado momento, que geralmente coincide com um período de alguma imunossupressão, o vírus é reativado e retorna por meio das terminações nervosas para as células do epitélio da pele. Começa então uma nova infecção.
O herpes também pode ser reativado por fatores ambientais: desde mudanças de temperatura ou aumento da luz solar até alterações hormonais ou estresse.
Depois que uma pessoa contrai uma infecção por herpes, o vírus permanece no corpo por toda a vida. As lesões aparecem e desaparecem porque o herpes é capaz de estabelecer e manter uma infecção latente nos neurônios por muitos anos e depois reativar com o tempo. Além disso, eles induzem uma resposta imune crônica, levando à liberação de compostos que promovem a inflamação.
Há muitos tipos diferentes de herpes: herpes simples tipo 1 e 2, varicela-zoster, Epstein-Barr, citomegalovírus… Esses são os vírus mais comuns e persistentes em humanos. Praticamente todo mundo tem ou já teve herpes: mais de 80% das pessoas têm anticorpos contra o herpes simplex tipo 1 ou varicela-zóster, por exemplo.
Herpes e Alzheimer: correlação, mas não causalidade
A doença de Alzheimer é um distúrbio neurodegenerativo progressivo que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Ela é caracterizada pelo acúmulo extracelular de peptídeos β-amiloides (amiloidose), seguido pela superprodução de proteínas e pela formação de emaranhados de fibras proteicas no cérebro. Essa proteína, chamada tau, é localizada nos axônios dos neurônios e está ligada à estabilização do citoesqueleto dos neurônios.
A doença envolve outras alterações e processos, como neuroinflamação, rompimento da junção entre os neurônios (sinapses) e perda neuronal, desregulação metabólica e, por fim, comprometimento cognitivo e demência. Foram identificadas variantes genéticas associadas à doença, como o gene da apolipoproteína E (APOE). Ele é responsável pela síntese de uma proteína fundamental no metabolismo de lipídios e no transporte de colesterol no cérebro.
Apesar dos enormes esforços de pesquisa, as causas da doença de Alzheimer não são totalmente compreendidas; os tratamentos atuais são apenas dos sintomas e não modificam a progressão da doença. Sugeriu-se que fatores ambientais e infecciosos, especialmente infecções crônicas ou reativadas, como as causadas por herpes, podem acelerar o declínio cognitivo.
Nesse sentido, evidências crescentes sugerem que infecções por herpes simplex tipo 1 podem contribuir para o início e a progressão da neurodegeneração.
Por exemplo, vários estudos post mortem encontraram DNA de herpes simplex no cérebro de pacientes com Alzheimer, especialmente em regiões com alta deposição de β-amiloide. A frequência e a quantidade de DNA viral parecem estar correlacionadas com a gravidade do comprometimento cognitivo.
O que é o Alzheimer?
- O Alzheimer é uma doença que afeta o funcionamento do cérebro de forma progressiva, prejudicando a memória e outras funções cognitivas.
- Ainda não se sabe exatamente o que causa o problema, mas há indícios de que ele esteja ligado à genética.
- É o tipo mais comum de demência em pessoas idosas e, segundo o Ministério da Saúde, responde por mais da metade dos casos registrados no Brasil.
- O sinal mais comum no início é a perda de memória recente. Com o avanço da doença, surgem outros sintomas mais intensos, como dificuldade para lembrar de fatos antigos, confusão com horários e lugares, irritabilidade, mudanças na fala e na forma de se comunicar.
Além disso, pessoas portadoras de uma variante específica do gene APOE, que as torna mais suscetíveis à doença de Alzheimer, também são mais suscetíveis à reativação do herpes e seus efeitos neurodegenerativos. E em pesquisas com animais infectados com herpes simplex, eles desenvolvem placas β-amiloides, alterações na proteína tau e inflamação neuronal semelhantes às encontradas em pacientes com Alzheimer.
Esses resultados sugerem que o herpes pode atuar como um cofator na doença, principalmente em pessoas com predisposição genética ou sistemas imunológicos comprometidos.
A relação do herpes zoster com as células microgliais, como astrócitos e oligodendrócitos, que desempenham papéis essenciais na homeostase cerebral, também foi analisada. O mau funcionamento dessas células cerebrais desencadeia a neuroinflamação que está ligada a sintomas depressivos e a outras doenças neurológicas, como o mal de Alzheimer. O herpes pode desregular a ação dessas células gliais, levando à ativação crônica dessas células e a um estado inflamatório persistente.
Assim, o herpes pode promover a patologia do Alzheimer por meio de mecanismos inflamatórios, desmielinização (deterioração da bainha de mielina que cobre as fibras nervosas) e disfunção sináptica.
Tudo isso sugere uma forte correlação entre a presença do vírus herpes simplex no cérebro e os marcadores clássicos do Alzheimer, mas não prova que eles sejam a causa da doença. A infecção crônica latente por herpes pode contribuir para o desenvolvimento da doença neurodegenerativa, especialmente em indivíduos geneticamente suscetíveis.
Antivirais contra a doença de Alzheimer?
Surge a questão de saber se as terapias antivirais, como o aciclovir, poderiam ser uma forma de retardar a progressão da doença. Embora preliminares, os dados disponíveis sugerem efeitos positivos do tratamento antiviral na progressão da doença de Alzheimer, particularmente em infecções por herpes simplex tipo 1 e varicela-zóster.
Em modelos de laboratório com células neuronais, o aciclovir demonstrou não apenas reduzir a expressão da proteína viral, mas também reduzir os níveis de β-amiloide e proteína tau. Em camundongos infectados com herpes simplex, o tratamento com o antiviral reduz a inflamação cerebral e a perda sináptica. Além disso, vários estudos epidemiológicos mostram uma associação significativa entre o uso de antivirais e a redução do risco de demência em humanos.
No entanto, esses estudos clínicos em humanos estão em um estágio muito inicial e são necessárias mais pesquisas. Talvez, no futuro, terapias combinadas iniciais (antiviral + anti-inflamatório + neuroprotetor) possam ser usadas para prevenir ou retardar a doença.
Uma vacina contra a demência?
Há algumas evidências de que as vacinas, especialmente as vacinas vivas atenuadas, podem ter efeitos imunes benéficos além da prevenção do patógeno específico. Esta semana, um novo estudo epidemiológico publicado na revista Nature reforça a evidência de que a vacinação contra herpes-zóster reduz o risco de demência.
O que é interessante sobre esse trabalho é que ele explora um “experimento natural”. Em 2013, as autoridades de saúde do País de Gales implementaram um programa de vacinação contra herpes zoster para pessoas com mais de 80 anos. Elas decidiram que qualquer pessoa que tivesse 79 anos de idade em 1º de setembro de 2013 poderia receber a vacina, e as pessoas acima dessa idade não poderiam. Essa decisão foi a única coisa que diferenciou os vacinados dos não vacinados. Portanto, era um grupo muito homogêneo, o que, em princípio, tornaria os resultados mais valiosos.
Eles examinaram os registros de saúde durante um período de sete anos de mais de 280.000 pessoas sem demência no início do programa de vacinação e compararam a relação entre a vacinação e a demência. Os resultados foram surpreendentes: a administração da vacina reduziu o risco de demência em 20%, um efeito protetor significativamente maior nas mulheres (as mulheres têm um risco maior de desenvolver demência na velhice, e há diferenças de gênero na resposta do sistema imune às vacinas).
Talvez a vacina produza esses efeitos porque evita a neuroinflamação crônica ao impedir a reativação do vírus. Ou talvez ela ative o sistema imune que protege de forma não específica contra a demência.
Embora nem todas as demências sejam Alzheimer, o novo estudo fornece uma das evidências mais fortes de que a vacinação contra herpes-zóster reduz a demência. No entanto, ele tem algumas limitações. Em primeiro lugar, o estudo analisou apenas populações com idade em torno de 80 anos. Em segundo lugar, o estudo analisou o efeito da vacina viva atenuada Zostavax, que foi retirada do mercado devido a outros efeitos colaterais.
Recentemente, foi desenvolvida outra vacina recombinante que é mais segura e mais eficaz contra o zoster (Shingrix), e seria interessante saber se o efeito se mantém com essa nova versão.
Um campo de batalha imune
Há vários anos se levanta a hipótese de que o Alzheimer pode ter, em parte, uma origem infecciosa: vírus, bactérias ou até mesmo fungos podem desempenhar um papel direto ou indireto em seu desenvolvimento. Não apenas o herpes simplex tipo 1, mas também bactérias como Chlamydia pneumoniae ou Porphyromonas gingivalis podem promover inflamação neurotóxica crônica, favorecer a formação de placas β-amiloides ou a degeneração progressiva dos neurônios.
Isso não prova que eles sejam a causa da doença, mas, de alguma forma, favorecem ou contribuem para o desenvolvimento da doença de Alzheimer, especialmente em determinados indivíduos suscetíveis. O cérebro pode ser como um campo de batalha imune crônico no qual os patógenos podem afetar sua função.
Embora as evidências não sejam conclusivas, essa hipótese é um novo caminho complementar para pesquisas adicionais sobre novos biomarcadores e o uso de antimicrobianos ou vacinas para tratar e prevenir essa terrível doença.
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