spot_img
terça-feira, 1 abril, 2025
More
    spot_img
    HomeBrasiliaDor que atravessa gerações: parentes de mortos na ditadura buscam respostas

    Dor que atravessa gerações: parentes de mortos na ditadura buscam respostas

    -

    No ano que o Brasil ganhou seu primeiro Oscar ao contar o drama de uma família que teve a vida modificada pela Ditadura Militar em “Ainda estou aqui”, o golpe que interrompeu a democracia brasileira completa 61 anos. Em 1º de abril de 1964 (a data ficou oficialmente registrada em 31 de março), o país passou a viver em um período que durou duas décadas e que ficou conhecido pelas repressões, censuras, violências, torturas, desaparecimentos, mortes entre outros crimes contra a humanidade.

    A luta da protagonista real do filme é para que o Estado brasileiro admita horrores que foi capaz de causar contra seus próprios cidadãos, especialmente seu marido: o ex-deputado Rubens Paiva. Mas não é só a família Paiva que busca por esse reconhecimento que se arrasta há anos. Familiares de mortos e desaparecidos pedem por justiça e pelo fim da impunidade dos militares que cometeram esses crimes. Nesse cenário, eles lembram e bradam: “ainda estamos aqui”.

    Um dos episódios mais emblemáticos da demora litigiosa sobre o assunto é a presença de restos mortais de possíveis guerrilheiros do Araguaia que permanecem na Universidade de Brasília (UnB) sem identificação há mais de 20 anos. As ossadas foram retiradas do cemitério de Xambioá (TO) em 2001, e são a esperança de familiares conseguirem enterrar seus entes.

    8 imagens

    Terceira geração de familiares cobram explicações

    Helenira era estudante universitária quando iniciou a ditadura
    Helenira
    Helenira em reunião da Une
    Esq. para direita_ Adalberto (pai) , Helenilda- irmã, Helenira, Helenice Irmã, Helenoira- irmã, Helenalda- irmã
    1 de 8

    Helenira aos 19 anos

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    2 de 8

    Terceira geração de familiares cobram explicações

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    3 de 8

    Helenira era estudante universitária quando iniciou a ditadura

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    4 de 8

    Helenira

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    5 de 8

    Helenira em reunião da Une

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    6 de 8

    Esq. para direita_ Adalberto (pai) , Helenilda- irmã, Helenira, Helenice Irmã, Helenoira- irmã, Helenalda- irmã

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    7 de 8

    Documentos sobre Helenira

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    8 de 8

    Documentos sobre Helenira

    Arquivo pessoal família Helenira Resende

    “É uma luta recorrente. O crime vai passando, a dor e o desaparecimento vão passando de geração para geração. Então é uma ferida que não cicatriza”, disse Marta Costta, sobrinha de Helenira Rezende, executada aos 28 anos por militares no Araguaia. A tia se juntou à guerrilha após ter sido presa, estuprada e torturada pelos militares.

    “Ela tinha duas opções e, hoje, eu consigo entender isso. Ou ela ia para fora do país ou ia para a guerrilha. Porque ela estava na clandestinidade. Então, ser presa não era uma opção. Se ela fosse presa [mais uma vez], ela era assassinada”, destacou.

    A ditadura acabou com os preceitos legais do país mantendo um governo de arbitrariedade. Nesse modelo, bastava uma denúncia (mesmo que falsa) para que a pessoa tivesse a casa invadida à noite, fosse sequestrada pelos militares e levada para torturas podendo sair viva ou não, conforme indicam os documentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

    Em um governo democrático, a polícia precisa de um mandado para efetuar a prisão, salvo casos de flagrante. Ainda assim, o preso passa por uma audiência de custódia para que um juiz avalie se a detenção foi legal. Os depoimentos desse investigado ainda devem ser feitos na presença de um advogado. O rito democrático não envolve espancamento, assassinato nem ocultação de cadáver, mas um julgamento em que as pessoas podem apresentar sua defesa em um tempo igual ao da acusação. Além disso, a sentença ainda deve ser publicizada.

    Marta é a segunda geração que busca respostas do que aconteceu com sua tia e a punição dos envolvidos. Ela também prepara a sobrinha para entrar nessa luta que tem sido herdada enquanto o Brasil empurra para debaixo do tapete.

    “Quando a gente foi fazer a pesquisa no Araguaia [para elaborar um documentário], por coincidência, a primeira pessoa que a gente encontrou é a pessoa que assassinou ela. Livre, andando como se nada tivesse acontecido e completamente impune”, acrescenta. A não responsabilização foi embasada pela lei de Anistia brasileira, aprovada em 1979 – sob regime da ditadura militar – e ainda vigente, que protege os militares. Em outubro de 2024, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a ocultação de cadáver não pode ser anistiada porque é um crime permanente, isto é, o crime continua enquanto não é devidamente esclarecido.

    Sem notícias

    Assim como Marta, que espera a análise dos restos mortais que estão em um laboratório da UnB há 20 anos, Diva Santana, 80 anos, aguarda o levantamento dos restos mortais de sua irmã Dinaelza Santana e do seu cunhado Vandick Reidner Pereira Coqueiro. Os dois também foram executados no Araguaia e acredita-se que seus restos mortais estão com os demais na UnB.

    A última notícia que Diva teve de sua irmã foi em uma carta de 1971 dizendo que estava bem. A família era constantemente vigiada, com carros na porta de casa todos os dias. Vizinhos e amigos se afastaram do imóvel que já tinha sido alegre e a família evitava falar o nome de Dinaelza seguindo a orientação da mãe que repetia: “mato tem ouvido e paredes têm vozes”.

    Por volta de oito anos, não se teve qualquer informação da geógrafa. “Eu lia tudo que era possível sair de notícia, em jornais que conseguiam às vezes falar alguma coisa”, contou Diva. A família ainda tinha esperanças de reencontrar a parente, mas uma reportagem relatando o que tinha acontecido no Araguaia mudou essa expectativa. “Lá falava que não tinha sobrado ninguém”. A ordem dos militares era matar e promoveram uma chacina no local. A irmã usava nome falso, Maria Dina, e o cunhado se apresentava como João.

    6 imagens

    Dinaelza

    Vandick Reidner
    1 de 6

    Dinaelza santana e Vandick

    Arquivo pessoal família Dinaelza santana

    2 de 6

    Dinaelza

    Arquivo pessoal família Dinaelza santana

    3 de 6

    Vandick Reidner

    Arquivo pessoal família Dinaelza Santana

    4 de 6

    Arquivo pessoal família Dinaelza santana

    5 de 6

    Arquivo pessoal família Dinaelza santana

    6 de 6

    Arquivo pessoal família Dinaelza santana

    “Eu tinha lido tudo e não tinha nenhuma menção à Diva ou ao Vandick”, disse Diva, mas recebeu a informação de que seus parentes estavam na região e tinham sido assassinados. “Aí eu peguei e vi que um trecho que dizia que no final de 1970 chegaram à região um estudante de economia João e uma de geografia, Maria, os dois vindos da Bahia. O rapaz, quando viu aqui para mim, a ficha caiu. Parece que um buraco se abriu em meus pés, porque eu tinha lido tudo com muito sofrimento”, contou.

    Cinquenta anos da vida de Diva têm sido dedicados a conseguir identificar a irmã e ter justiça à sua morte. Nesses anos, ela se depara com uma constante impunidade e tentativa de apagamento dessa parte da história recente brasileira.

    “O Brasil é condenado a entregar os arquivos militares, dizer onde nossos parentes foram sepultados e fazer o traslado. Até hoje, eles não disseram”, afirma. “Você vê como a impunidade inteira, como a impunidade inteira. O Brasil é condenado pela pela Corte Interamericana desde 2010. E não cumpre as sentenças, não cumpre nem da 1ª Vara Federal e nem da Corte Interamericana. Simplesmente não cumprem as sentenças”, completou.

    Caso se arrasta na justiça

    Em 2003, o Brasil foi sentenciado pela 1ª vara em Brasília do Tribunal Regional Federal, sendo obrigado a fazer o translado dos ossos e o reconhecimento das pessoas. Também foi obrigado a quebrar o sigilo das operações relativas à guerrilha do Araguaia. Houve recurso, e o processo que teve início em 1982 ainda tramita sem resposta. É esse processo que mantém sob custódia as ossadas do Araguaia em laboratório da Universidade de Brasília.

    Em 2010, o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil pelas violações na guerrilha do Araguaia. O tribunal examinou os direitos violados, como o direito à liberdade pessoal, integridade física e psíquica, justiça e acesso à informação e avaliou a responsabilidade do Estado em relação a essas violações, incluindo a aplicação da Lei de Anistia e a falta de investigação e punição dos responsáveis. São analisados os direitos violados, como o direito à liberdade pessoal, integridade física e psíquica, justiça, e acesso à informação.

    O caso do Araguaia é similar em algumas características quanto ao caso da vala clandestina de Perus, em São Paulo. Na última segunda-feira (24/3), o governo brasileiro formalizou um pedido de desculpas quanto à negligência da União na guarda e identificação dos remanescentes ósseos no cemitério ilegal.

    3 imagens

    Manifestação do movimento negro durante a ditadura militar

    1 de 3

    Familiares e vítimas da ditadura realizam ato contra aquele regime, na Praça Três Poderes

    Igo Estrela – Metrópoles

    2 de 3

    Manifestação do movimento negro durante a ditadura militar

    Arquivo Público/Senado Federal

    3 de 3

    Antonio Cruz/Agência Brasil

    A vala foi usada por militares para desovar os cadáveres durante a década de 1970. A abertura do cemitério clandestino foi feita em 1990 e no local foram retirados 1.049 conjuntos ósseos que não tinham qualquer identificação.

    A abertura da vala clandestina foi realizada em setembro de 1990. O local usado ilegalmente escondeu corpos de pessoas indigentes, de desconhecidos e daqueles considerados opositores ao regime de opressão iniciado em 1964.

    O Ministério Público Federal denunciou as instituições envolvidas foram denunciadas pela condução dos trabalhos e pelas condições precárias de armazenamento dos remanescentes.

    “Nenhuma mãe viva dos desaparecidos”

    A presidente da Comissão Nacional da Verdade, Eugênia Gonzaga aponta para o sofrimento das famílias que estão há décadas sem ter uma reparação do que seus familiares passaram. “Não tem nem uma mãe viva. Nem mais uma mãe. Nenhuma mãe viva dos desaparecido”, informou. Muitas figuras maternas morreram sem poder enterrar o filho nem ver quem os matou sendo punido.

    O tempo tem sido inimigo também para punir, já que os envolvidos também estão envelhecendo. “Tem muita gente viva. Infelizmente, a maioria dos cabeças dos respeitáveis eu acho que já faleceram. Mas você ainda tem muita gente que participou; torturadores e uns cobrem os outros”, acrescentou. Eugênia disse que há uma pacto de silêncio entre os envolvidos e até mesmo de pacto de morte. Ela lembrou o caso do tenente-coronel Paulo Malhães que um mês após confessar os crimes da ditadura militar à comissão foi assassinado em casa. A principal suspeita é crime de arquivo. Até hoje ninguém foi punido por essa morte.

    “Essas pessoas estão aí, elas estão ainda em estruturas do poder e é uma pena que o judiciário brasileiro tenha demorado tanto tempo. Não é tarde para defender a sua posição. Não é e nunca vai ser tarde, mas pode realmente assim, representar na prática uma decisão apenas pedagógica”, completou.

    O Metrópoles questionou o TRF-1 sobre o caso que se arrasta há quase 40 anos desde a entrada do processo na corte em Brasília, mas o tribunal disse apenas que o caso está em segredo de justiça.

    A reportagem também questionou a Universidade de Brasília sobre a situação das ossadas encontradas no Araguaia, mas a instituição não respondeu. O espaço segue aberto para possível manifestação.

    Related articles

    LEAVE A REPLY

    Please enter your comment!
    Please enter your name here

    Stay Connected

    0FansLike
    0FollowersFollow
    3,912FollowersFollow
    22,300SubscribersSubscribe
    spot_img

    Latest posts