*O artigo foi escrito por Sonia Laín, pesquisadora de Biologia Celular e Molecular do Câncer, no Instituto Karolinska (Suécia), e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
É provável que você conheça ou tenha ouvido falar de alguém que foi afetado pelo câncer. E, em alguns desses casos, suspeita-se que a doença pode ter surgido ou foi desencadeada em decorrência de uma situação de estresse ou medo prolongado. Essa associação é verdadeira ou carece de base científica? É possível que abusos ou ameaças na família, no trabalho ou nas relações sociais possam levar ao aparecimento de células portadoras de mutações em seu DNA?
O papel dos hormônios do estresse no câncer
Quando nos deparamos com o perigo, nosso sistema nervoso autônomo ativa a produção de glicocorticoides (cortisol) e catecolaminas (adrenalina e noradrenalina), os hormônios do estresse. Isso nos permite alimentar o cérebro e os músculos como prioridade e, assim, dedicar o máximo de nossa energia para lutar ou fugir. Outras funções fisiológicas, como responder a infecções e reparar ou remover células anormais, ficam em segundo plano durante o período de ameaça.
No curto prazo, esse rebaixamento não é problemático. No entanto, sabe-se que o estresse psicológico prolongado leva a doenças cardíacas, problemas de cicatrização de feridas e menor resistência a infecções. A duração da ameaça é importante. Mais recentemente, o estresse crônico também foi associado ao desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson.
Qual é o consenso atual sobre a associação entre ansiedade e câncer? A Organização Mundial da Saúde não inclui a primeira entre as causas diretas da segunda. No site do Instituto Nacional do Câncer, dos Estados Unidos, você pode ler:
“Embora o estresse pareça estar ligado ao risco de câncer, a relação pode ser indireta. Por exemplo, pessoas sob estresse crônico podem desenvolver certos comportamentos prejudiciais à saúde, como fumar, comer demais, ser menos ativo ou beber álcool que, por sua vez, estão associados a um risco maior de desenvolver alguns tipos de câncer”.
Neste texto, a vítima é culpabilizada por sua falta de vontade. Conforme detalhado abaixo, isso também não é necessariamente correto.
Evidência experimental
Estudos epidemiológicos sobre a associação entre estresse psicológico e câncer são inconclusivos. Isso não é surpreendente, pois o número de variáveis entre as pessoas (hábitos, tipo e duração do estresse, idade, situação econômica e familiar, etc) pode ser muito extenso para chegar a estimativas numericamente significativas. Ainda assim, um estudo recente e muito amplo mostra uma ligação, que pode ser indireta ou direta.
Por outro lado, graças às pesquisas laboratoriais, os mecanismos pelos quais o desgaste psicológico e a ansiedade crônica favorecem diretamente a gênese e o crescimento de tumores estão se tornando cada vez mais claros. Durante décadas, vários estudos foram publicados sobre seu efeito negativo no sistema imunológico e seu papel na eliminação de células anormais, algumas das quais podem ser pré-cancerígenas ou mesmo cancerígenas. Várias avaliações corroboram isso.
E, além do papel importantíssimo desempenhado pelo sistema imunológico, alguns genes expressam fatores que impedem a proliferação ou causam a morte de células danificadas. Um dos genes mais frequentemente mutados ou desativados em tumores é aquele que codifica a proteína p53.
De fato, dois estudos realizados em condições laboratoriais controladas indicam que a atenuação da função supressora de tumores do p53 pode ser uma parte importante do mecanismo pelo qual o estresse psicológico promoveria o crescimento do tumor. Em um deles foi demonstrado que o cortisol promove a destruição do p53 e que a injeção de corticosterona em camundongos (a corticosterona é a versão murina do cortisol) diminui os níveis e a função dessa proteína.
O segundo artigo sugere que a presença de p53 é reduzida no timo de camundongos que receberam o medicamento isoprenalina, uma catecolamina (hormônios e neurotransmissores) sintética. Neste trabalho, os autores também observaram que o timo desses camundongos apresentava altos níveis de um marcador molecular usado para detectar danos ao DNA genômico.
Ainda antes, em 2007, descobriu-se que as catecolaminas e o cortisol causam alterações no genoma e, portanto, produzem aberrações que podem ser cancerígenas.
Em populações humanas, observou-se que indivíduos com síndrome de Cushing, e que, portanto, produzem cortisol em excesso, têm maior tendência a desenvolver tumores.
Medição de marcadores de estresse como método de prevenção
Muitos de nós pensamos que podemos suportar grandes doses de ansiedade e estresse psicológico e fazemos isso por anos. No entanto, vale a pena considerar que, talvez, nosso sistema nervoso autônomo, nosso sistema imunológico e nossas defesas intercelulares não sejam tão resistentes.
Na era das ciências “ômicas” (genômica, proteômica, metabolômica etc) e do big data, podemos medir os níveis de milhares de moléculas no sangue, na urina ou na saliva, e fazer isso ao longo do tempo. Isso inclui os hormônios do estresse.
Já existem trabalhos científicos nos quais são detectados marcadores associados ao estresse psicológico, um deles muito recente. Isso, talvez, possa validar as conclusões derivadas de estudos laboratoriais com cortisol e catecolaminas e determinar se níveis anormais de outros fatores estão associados ao aparecimento do câncer.
Posteriormente, e tal como foi feito com o cortisol, os estudos laboratoriais permitirão confirmar as hipóteses derivadas do big data sobre a associação entre o nível de um fator específico e o aparecimento de tumores.
Em resumo, há evidências experimentais de que os hormônios do estresse podem promover o desenvolvimento do câncer diretamente por vários mecanismos. Esses hormônios causam alterações no genoma, enfraquecem nosso sistema imunológico e desativam fatores supressores de tumores que atuam dentro de nossas células (como o p53).
Sem subestimar a relação indireta entre estresse e câncer, os estudos experimentais mencionados aqui sugerem que o medo crônico ou o estresse psicológico podem causar mutações e enfraquecer a eliminação de células mutantes também diretamente.
Siga a editoria de Saúde e Ciência no Instagram e fique por dentro de tudo sobre o assunto!